VIDA E MORTE

 

O objetivo deste ensaio é o de produzir um texto filosófico a partir de uma obra de arte à minha escolha. Considerando a trajetória e a proposta do Curso de Filosofia da Psicanálise, pensava a partir de que tipo de obra de arte, poderia honrar as reflexões que o mesmo me proporcionou e optei por uma obra presente em boa parte das casas, pelo menos daqueles de minha geração ou região: os quadros pintados a partir de cópias de fotografias de família por pintores anônimos, geralmente feitos para casamentos, talvez um modismo da época. Sempre pensei, também tendo facilidades em desenhar copiando, que o artista mesmo na cópia deixa uma marca de sua presença dando um tom muito pessoal a partir da sua visão e interpretação do que vê. Pode ser considerado uma Obra de Arte ? Quem poderá determinar isto ?

    Este é o quadro celebrativo do casamento de meus pais, onde junto a eles, figuram meus avós paternos. Evidentemente o que evoca sobre mim ou outro membro de minha família será muito particular, distante do efeito que causará à outros.

    O quadro, sempre presente em meu campo de visão na infância, raramente ganhando um olhar mais demorado, já não tem lugar na sala de estar da casa dos meus pais , e sim, jaz sem moldura em alguma caixa de guardados. Hesitei em relação a esta escolha, até o momento em que meu sobrinho, a meu pedido o fotografou no RS e enviou-me a imagem digitalizada via email.

    No momento em que o arquivo abre-se, tocado pela emoção, dissiparam-se as dúvidas.... de imediato neste contato com a obra ressoaram em mim as palavras de Merleau Ponty que mesmo que não se referissem a visão sobre uma obra de arte, fizeram sentido para mim neste olhar, são as que seguem...

    “... ser visto por ele, existir nele, emigrar para ele, ser seduzido, captado, alienado pelo fantasma, de sorte que vidente e visível se mutuem reciprocamente, e não mais se saiba quem vê e quem é visto. ..“(Merleau-Ponty, 1964, 135.)

    “O que há então, não são coisas idênticas a elas mesmas que, em seguida, se ofereceriam ao vidente, e não é um vidente vazio antes de tudo que, em seguida, se ofereceria a elas, mas alguma coisa de que não poderíamos estar mais perto senão lhe apalpando com o olhar, porque o olhar mesmo as envolve, as veste com sua carne. De onde vem que, fazendo isto, ele as deixa em seu lugar, que a visão que nós as tornamos nos parecer vir delas” (MPonty, 1964, p.173).

    Recordo também dos conceitos de “aura” de Walter Benjamim que cita esta experiência aurática nas palavras de Proust:

    “ A experiência aurática se dará a partir das semelhanças e correspondências não sensoriais entre a natureza animada e inanimada, apreendidas pelo olhar do artista e isto proporcionará a ponte entre o objeto observado e o observador que será arrebatado em um momento fugidio pelos ....traços inconscientes do passado que são magicamente reativados”...(Proust)

    E exatamente esta ponte se dá, a pintura-fotografia extática ganha vida ao meu olhar, sou visto por ela, existo nela e um turbilhão de lembranças de histórias contadas e recontadas e histórias vividas desfilam carregadas de emoções diferentes diante de mim....reativando traços inconscientes do passado no quadro que carrega um “valor de culto” por compor-se de imagens de meus ancestrais e na névoa que, sob as imagens convida à entrega, à impermanência, como se esta névoa começasse lentamente a dissolver as imagens, ameaçando dissolver qualquer lembrança destas vidas, destas histórias, que inexoravelmente se perderão neste processo e chegará o tempo em que não haverá resquício de nenhum delas em nenhuma memória futura. Surpreendo-me a olhar a mim mesmo a partir do quadro, tenho sensações, algumas familiares, outras novas, estranhas... Uma parte de mim tende a querer arriscar-se a falar sobre o “indizível” que se manifesta neste mergulho e anseia por vazão, outra procura firmar nas memórias mais precisas, nas recordações mentais que tentam dar conta da forma, da análise, do conhecido.

    O desejo mais presente é o da liberdade, liberdade do pensar, do sentir, da expressão, do ser, liberdade para permitir o fluxo das palavras que chegam sem preocupar-me com requisitos , avaliações e julgamentos, e decido que o ponto de partida deverá ser a história, a memória.

História

    Meu olhar fixa-se no homem à esquerda, meu avô paterno, Sérgio, o avô que não conheci, falecido alguns anos antes de meu nascimento. O homem vivo nas histórias, vivo em mim principalmente no olhar de minha avó que lembrava com freqüência minha semelhança física e de índole com o mesmo. O homem simples, no interior do RS, amante do campo, defensor dos animais, com ávido desejo de conhecimento que o faz aprender a ler praticamente só, e que neste esforço lê e relê um pequeno livreto com a história de “Pinóquio” que conta e reconta com gosto a quem quer ouvir.

    Minha avó, à direita, Eva, nome da grande Mãe da Tradição, revela para mim o olhar no futuro onde já se identifica a angústia sobre os desdobramentos da prole de sete filhos, por não estarem mais sob sua guarda, espalhando-se no mundo, sentimento quem sabe, apaziguado por sua memória prodigiosa, que guarda sem erro o aniversário de cada filho e neto, para quem levará na data certa algo bem simples para presentear, geralmente um sabonete, (o que permite suas condições), a mulher que após o almoço reserva sempre um prato caprichosamente servido e envolto em um pano de prato, reservado no cuidado e na expectativa que um filho ou neto apareça de surpresa em sua casa; a avó que no leito de morte em um momento me chamava conscientemente para estar a seu lado, ora delirava alertando quem estivesse próximo de que deveria acordar-me para que eu não perdesse o horário do trabalho.

    Do olhar de minha Mãe, vou além para dar conta da memória dos que vem antes não presentes na imagem....minha Avó Maria, outra referência a uma Mãe de todos, a mulher à frente de seu tempo, ousada, que rompe com a condição e a época e foge da cidade para fazer um curso profissionalizante e na intenção do retorno, não encontra escuta, encontra barreiras e na dor deixa o casal de filhos pequenos para trás, a vida a leva à Porto Alegre da época, onde surpreendendo pela coragem e ousadia torna-se motorista de táxi, tal qual Ulisses, objetiva voltar atrás e levar ao mínimo a menina consigo quando tiver condições, e no retorno com tom vitorioso para a época , de avião à terra natal, encontra a menina, minha mãe, com 16 anos já em vias de casar-se, o que a faz seguir sem olhar para o passado por muito tempo.

    Meu avô materno, Oly, a dor da revolta pela decepção, configura o homem forte que se agiganta na adversidade, tornando-se pai e mãe, ao mesmo tempo em que trabalha muito, desdobra-se na doçura do homem que encontra tempo para criar a menina, minha mãe envolta em laços e fitas, cuidando para que os filhos tenham acesso ao cinema e ao aeroclube. O coração aberto lhe traz um novo amor, mais filhos e ainda espaço para adotar uma menina. Me chegam fortes imagens de sua luta contra o câncer na garganta que o leva embora e a viva memória de um de nossos últimos contatos presenteando-me com uma revistinha na porta de minha casa. Saudades destes queridos...para sempre....

    Meus Pais, os jovens no centro, Norma e Juvenal, ela com 16 anos, ele por volta dos 21, os olhares inocentes, que quaisquer que sejam seus planos neste momento estarão muito aquém do que a vida os trará. Muito em breve os filhos começarão a chegar, serão cinco, quatro mulheres e eu, e os netos, neste momento dez e um bisneto. Os jovens na imagem enfrentarão as dúvidas, os medos, a dor, a morte, a escassez, mas viverão certezas, prazeres, alegrias. O menino, que abandona os estudos no primário para auxiliar os pais no trabalho no interior, a menina que convive sem a Mãe, e encontra a responsabilidade no auxílio na criação dos meio-irmãos e muito cedo no cuidado da própria família. Sondo esta trajetória e nos sonhos dos jovens apaixonados no encontro inusitado na vizinhança, as escolhas,...os caminhos....o amor...e neste campo revisito as motivações que os fizeram os avós amorosos que são.

Visões

    Na medida que consigo vê-los nesta condição, os julgamentos se desfazem também no convite dado pela mesma névoa e meu olhar e coração vão além das figuras que cada um representa e os livro do peso que carregam, Pai, Mãe, da expectativa pelos seres supra-humanos, conhecedores do bem e do mal, os alivio das cargas e enxergo os seres humanos que foram-são, e descubro dentro das visões de mundo, circunstâncias e saberes de cada um que sou encarnação do desejo de ser feliz dos que me antecederam.

    Penso na morte, na presença do fim, nas minhas primeiras constatações sobre ela, na morte contada de meu avô materno ou de uma irmã que antecedeu-me e durou horas, no primeiro contato real com a perda, na ocasião da morte de minha avó, segunda mulher de meu avô materno, Sudária, a avó materna que conheci, minha memória clara da infância trás imagens da avó que nos criava em torno de antigas latas de bolachas e carinho. Marcadamente minha primeira perda real aos cinco anos de idade e a seqüência de mortes de meu avô materno, avó paterna, materna, tios, amigos, as cerimônias fúnebres, a escola próxima a um cemitério que convidava a mim e a meus colegas a transitar com tranqüilidade em meio às lápides, investigando fotografias, nomes, histórias....Consciente do inevitável imagino a chegada do momento da passagem de meus pais, ou irei eu antes deles ? Acolho no coração este agora e aquieto meu peito, confiando no processo da vida, que tudo será como deve ser, e receberei a passagem, deles, de outros amados, ou a minha com abertura, e desejo que a morte chegue em momentos em que a dignidade esteja viva, a troca ainda se estabeleça com qualidade, que quem sabe possa ser também uma escolha interna se a vida trouxer alguma circunstância em que a morte seja mais agradável do que arrastar-se pela existência, com consciência, sem ilusões ou apegos que nos fazem querer manter o sopro a qualquer custo, as vezes demasiado alto e doloroso.

    Não me esforço em encontrar sentido, afinal haverá? Gozo o sopro manifesto que me sustenta e ampara, lembro que fui perguntado uma vez sobre o que, se fosse tirado de mim, tudo se perderia e respondi: “paixão”. Sigo apaixonadamente em minhas escolhas, nos vários quadrantes da vida, escolho meus amores, prazeres, cidade, estudo, trabalhos a partir desta paixão e meu desejo é fazer diferente, mas com intensidade, dançando esta experiência da qual só podemos tagarelar sobre, afinal. Que os ciclos se cumpram, em profunda confiança.

    Retenho novamente o olhar sobre a obra e meus queridos retratados ali e desejo intensamente libertá-los de qualquer coisa que possa aprisioná-los, das roupas e laços apertados, quero soprar sobre eles, revivê-los, revisitar a força vital, ampliar o espaço, iluminar seus olhares e dar-lhes voz, e dou conta que são todos desejos para mim mesmo. Lembro-me que não darei por opção e circunstâncias continuidade através de filhos a esta história, e continuidade de algo se deve haver configura-se em minha própria vida, as marcas de meus passos pela existência, deixadas nos encontros com o outro, nas partilhas e este é o chamado de minha totalidade e inteireza aqui e agora, e... respiro profundamente, abro o peito, esgoto as emoções, solto a voz, vivo e celebro, olho novamente a obra e a impermanência se revela mais uma vez no pequeno rasgo na imagem à direita, o que agora faz parte da composição do quadro, e ele me conta de ilusões, de planos desfeitos, de lutas sem sentido, me conta de força, de motivações, de desejos além da medida, me fala de crença, de fé, pacifica meu ser na certeza e no acolhimento de que cada um dá de si o que pode, a partir de sua compreensão de mundo e das circunstâncias que se apresentam. Sinto um grande e profundo amor e gratidão e a melhor maneira de honrar tudo isto será caminhar com grande liberdade, respeitando meus “sim´s” e meus “não,s”, para que sejam cada vez mais verdadeiros. Os passos de cada um dos retratados ou lembrados fizeram-me quem sou, resulto deles e acrescento um mistério só meu, e meus passos ressoarão neste sistema, impulsionando os que chegam a este círculo.

    E a teia da vida ri e faz troça de mim, no gozo do grande mistério nas imagens de meus sobrinhos (que compartilho abaixo): de minha sobrinha de três anos Isabella, soprando bolhas de sabão, que simbolizam o efêmero e no olhar luminoso e sorriso fácil de meu sobrinho Lucas que completa um ano em dezembro próximo, pontos mais novos desta tecitura, brotos mais tenros desta árvore....e minha sensação diante do absurdo e da graça deste exercício onde me redescubro, me atualizo e me reinvento é de alegria, celebração de algo que não encontra códigos ou interpretações e vibro em amor no silêncio que toma conta de mim neste eterno agora.


                                                                                                                          Jairo Salles




Eu não sou eu.
Eu sou alguém que caminha a meu lado.
Que permanece em silêncio quando estou falando.
Que perdoa e esquece quando estou irado, esbravejando.
Que segue sereno quando estou aflito, sofrendo.
E que estará de pé quando eu estiver morrendo.
Eu não sou eu.
Eu sou alguém que caminha a meu lado.

(Juan Ramón Jiménez)

 

Florianópolis, Novembro de 2011



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